Por Patrícia Lima
Foto Marcos Pereira
Ele foi uma das atrações mais badaladas da programação do 21º Congresso Brasileiro de Arquitetos, que ocorreu de 9 a 12 de outubro, em vários pontos de Porto Alegre. Deu palestras, participou de painéis e articulou projetos com os colegas arquitetos. Carioca de nascimento, Claudio Acioly Jr., 62 anos, viveu menos da metade da sua vida no Brasil. O restante foi de peregrinação por várias cidades do mundo, na maioria delas a serviço da ONU Habitat, o braço das Nações Unidas dedicado às questões relativas à moradia e às cidades. Hoje vive em Nairóbi, na África, sede da ONU Habitat, e enfrentou uma maratona de voos para chegar a Porto Alegre.
Além de sua intensa participação no CBA, Acioly também visitou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade para debater sobre o recém assinado Memorando de Entendimentos, que viabilizará a cooperação técnica da ONU Habitat na revisão do Plano Diretor de Porto Alegre.
Arquiteto formado pela UNB, Acioly já atuou em mais de 25 países como consultor e especialista no setor da habitação, gestão urbana e urbanização de assentamentos informais. Também participou da formulação e execução de projetos e da formação e capacitação profissional de quadros diretivos e técnicos de governos locais, nacionais, universidades e ONGs. De uma sala do hotel em que ficou hospedado, Acioly recebeu a reportagem do 21º CBA para uma longa conversa. Confira a seguir os principais trechos.
Transformações nas cidades
"As cidades estão se transformando, isso é um fato. Acho essa área fascinante. Roterdã, por exemplo, é o maior porto do mundo, que precisou enfrentar mudanças sociais radicais. Com a tecnologia dos contêineres, uma grande massa de mão de obra ficou ociosa. O sistema de controle dos contêineres era operado por cinco pessoas, tudo automatizado. Isso é uma mudança radical na cidade. O porto começou a se descolar do tecido urbano da cidade. Outras áreas portuárias de outras cidades também sofreram transformações profundas, como Barcelona, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Baltimore, enfim, são muitas. É uma tendência aproveitar a proximidade com a água para transformar áreas muitas vezes degradadas. O ideal é que as cidades sejam permanentemente planejadas, com seus Planos Diretores revisados constantemente, para que sejam feitas as adequações necessárias. Metas devem ser estabelecidas e os ajustes ao longo do percurso são fundamentais para atingir essas metas. Revisões e monitoramento a partir de indicadores possibilitam as transformações necessárias na cidade. Curitiba fez isso e se tornou referência em vários aspectos. Porto Alegre está se preparando para revisar seu PD e precisa refletir sobre isso".
A ONU Habitat e os Planos Diretores
"A ONU firma parcerias com várias cidades, inclusive celebrou uma com Porto Alegre recentemente. Mostramos o trabalho que vem se fazendo pelo mundo em projetos como tipos de intervenção para a urbanização de favelas, índices de prosperidade urbana, oferta de espaços públicos na cidade. A ONU Habitat traz referências internacionais que conhecemos ou nas quais trabalhamos, ajudando as prefeituras a construir uma horizontalidade na gestão urbana e de planejamento e também estabelecendo metas. Os planos diretores não são somente urbanísticos ou físico-territoriais; esses planos precisam congregar atividades econômicas e interesses sociais. É uma multiplicidade de combinações. Nosso objetivo é ajudar nesse processo e promover a participação da sociedade nessas decisões".
Participação social
"Aprendi, no período em que vivi na Holanda, que a participação da comunidade nas decisões sobre o planejamento da cidade é muito importante. Normalmente, as decisões são tecnocráticas, ou seja, tomadas por um grupo de técnicos, baseada em conhecimento científico. O cidadão apenas recebe essas decisões. Mas é a comunidade que utiliza os espaços que planejamos. A participação permite ao cidadão manifestar sua opinião com relação ao planejamento que, segundo critérios técnicos pode estar perfeito, mas em desacordo com as necessidades e a vontade daquela comunidade. O planejamento serve para calibrar ideias e o apoio da comunidade. Em um processo participativo, existe a corresponsabilidade nos investimentos, o que cria vínculos com as ações de planejamento do território".
Densidade urbana
"É um tema presente no mundo todo. Como filosofia, a ONU Habitat promove as cidades compactas, conectadas, resilientes e que ofereçam acessibilidade e mobilidade no espaço público, com a menor emissão poluente possível. Aí entram os meios alternativos de transporte, como caminhar, bicicleta ou os veículos leves sobre trilhos. Olhando historicamente, vimos que as cidades se viram confrontadas com centros urbanos abandonados. Os modelos anteriores criaram os Central Business Districts, onde ficavam o comércio, negócios e bancos. À noite, as pessoas vão embora e aquela estrutura fica toda ociosa. No dia seguinte, um movimento pendular faz a área ficar cheia novamente. Isso foi muito comum nas cidades americanas e europeias. Mas mudanças comportamentais começaram a exigir um outro tipo de planejamento: famílias que tinham filhos desejavam retirar-se das áreas mais densamente ocupadas para morar em casas maiores, com mais espaço, em outros tipos de usos residenciais. Quando os filhos começam a ir para a Universidade, essas mesmas pessoas querem retornar às áreas centrais, onde podem facilmente caminhar até o mercado, o cinema ou a biblioteca. Elas não encontram, porém, uma oferta habitacional satisfatória. A partir daí, e agora falando mais sobre as cidades europeias, várias passaram a apostar nos usos mistos dos espaços centrais, não apenas com negócios e comércio, mas também com habitações de todos os níveis socioeconômicos. Roterdã é um exemplo disso, pois fez essa combinação com sucesso depois dos bombardeios que sofreu na guerra. Para aplicar essa lógica em outras cidades, é preciso fazer uma série de perguntas para avaliar o impacto e as consequências dessa maior utilização da infraestrutura instalada nas áreas centrais. A princípio, essa é uma boa política. Podemos ganhar com a maior utilização sem, necessariamente, expandir a cidade, gerando mais problemas de mobilidade e com a necessidade de mais investimentos públicos. O ponto central é definir o que a cidade quer: expandir, como a Austrália e os Estados Unidos, ou compactar, como a Europa".
Mobilidade Urbana
"Vivemos o renascimento de alguns meios de mobilidade como a bicicleta e a prática de caminhar. Mas, para isso, é preciso ter espaços públicos de qualidade, calçadas bem feitas e segurança para que as pessoas de diferentes idades possam circular sem serem atropeladas ou desrespeitadas. Esse é um fenômeno mundial, pois chegamos à conclusão de que temos que diminuir o uso abusivo do transporte motorizado individual, que está criando muito problema nas cidades. Percebemos também uma mudança importante nas frotas. As cidades chinesas, por exemplo, estão mudando massivamente suas frotas de transporte coletivo para ônibus elétricos – eles que tinham a fama de país poluente. Um outro problema que envolve a mobilidade é o assentamento informal. As pessoas se estabelecem nesses locais irregulares não por que querem, mas por que não têm opção. Assumem o risco de serem desalojados por uma série de motivos. Os deslizamentos em Niterói são um exemplo disso. Temos que olhar com cuidado para a demanda de habitação nas cidades. O planejamento precisa contemplar essas particularidades. As cidades precisam refletir sobre isso para pensar a mobilidade como um todo".
ODS e Metas
"Um dos nossos projetos com as prefeituras é ajudá-las a fazer a sincronização das suas políticas municipais com a agenda 2030 e os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável). O objetivo é pensar como vamos tornar nossas cidades sustentáveis, resilientes, seguras e justas para todos. Primeiro, temos que nos concentrar nas metas, que no caso do ODS são dez: melhorar os espaços públicos, a qualidade do ar, destinar corretamente os resíduos sólidos, promover habitação de qualidade para todos, urbanização das favelas, a valorização do patrimônio, o planejamento regional e urbano e a melhoria da mobilidade e do transporte são as que lembro de cabeça agora. Como vamos realizar isso tudo? Precisamos olhar para a cidade como um todo e vislumbrar o que queremos até 2030. Aí podemos planejar e buscar soluções".
Remoções Forçadas
"Como princípio, a ONU não promove nem advoga em favor das remoções forçadas, por que elas são a violação do direito à habitação adequada. Mas, se eu tenho que remover você e sua família por questões maiores de interesse público, dizemos que o devido processo deve ser seguido. As pessoas devem ser consultadas antes, devem ser envolvidas na solução, o processo de remoção e transferência deve ser acompanhado, tem que haver apoio para essa transferência e também posterior, no local de destino. Isso está estabelecido em documentos aprovados na Assembleia Geral das Nações Unidas, são procedimentos aceitos pelos Estados membro. Não é bem assim dizer que não pode remover. Mas para isso, deve-se seguir procedimento. A condição de vida das pessoas não pode piorar em função dessa remoção. Mas a verdade é que, ao redor do mundo, forças políticas e de mercado, como interesses imobiliários, geram o risco de remoção. Em muitos locais as remoções ocorrem por força, com perda de vidas, e em outros existe negociação. É um problema presente ainda, em todo o mundo".
O papel do arquiteto
"Pela primeira vez, a disciplina do planejamento urbano e a disciplina do arquiteto fazem parte dessa agenda ambiciosa de tornar o nosso planeta sustentável. Elementos como habitação e planejamento urbano estão no centro do debate sobre tornar as cidades mais eficientes. E o arquiteto está no centro disso. Eu me formei na Universidade de Brasília, onde existiam duas correntes fortes: a modernista e a que falava em arquitetura engajada, mais social e ligada às necessidades da população. Tinha o artista criador, com habilidade técnica para solucionar problemas espaciais e estruturais, com viés de inovação no uso de materiais. Um profissional treinado para utilizar os materiais para criar soluções de moradia, nas cidades, aproveitando os espaços. O outro é um profissional-instrumento que empodera os grupos sociais para os quais ele trabalha, fazendo uso do seu conhecimento para que haja maior igualdade de oportunidades na cidade. Ele olha o espaço como um bem público que pode ser traduzido em uma cidade para todos. Não só um edifício, mas tudo que o circunda. Quando fui trabalhar na África para o governo holandês, apliquei ao extremo esse “modelo”, esse formato de ser um instrumento para transformar as precariedades daquelas comunidades em oportunidade. Compartilhando o conhecimento de forma que todos pudessem compreender e participar do planejamento dos bairros e das cidades em que aquelas comunidades iriam viver. Eu fazia cartazes simples para explicar os projetos para as comunidades. Esse era o papel do arquiteto naquela situação: transformar o conhecimento técnico de arquitetura em algo que as pessoas pudessem entender e, então, participar. Para mim, é isso".