UM PAÍS DE IDEIAS FORA DO LUGAR E DE LUGARES FORA DAS IDEIAS

Com uma visão realista sobre o urbanismo no Brasil, a arquiteta, professora e ativista Ermínia Maricato debate as cidades e propõe o engajamento social para repactuar os espaços e a democracia nos ambientes urbanos

Por Patrícia Lima


A mulher de pequena estatura se agiganta ao falar sobre os temas aos quais dedicou uma vida inteira de estudo, pesquisa, trabalho e militância. Professora e ativista, a arquiteta Ermínia Maricato foi a atração na conferência de abertura do 21º CBA. Encerrada sua palestra, ela não parou de fazer o que sempre faz: articular as variadas forças populares para repensar as cidades e torná-las espaços verdadeiramente democráticos, sustentáveis e inclusivos. Em suas palestras e entrevistas, Ermínia descortina a trajetória de desigualdade e preconceito que originou o Brasil urbano em que vivemos. Com voz firme, denuncia a responsabilidade dos gestores públicos, que pouco agem em favor da criação de um tecido urbano favorável às gentes de todos os extratos sociais. Com a mesma firmeza, somada a uma dose de ternura, declara a esperança que nutre em um futuro de espaços mais democráticos nas cidades brasileiras.


Depois de mais de duas horas de reunião para a articulação do núcleo do projeto BRCidades em Porto Alegre, Ermínia seguia disposta para esta entrevista, que ocorreu na sede do IAB-RS. Confira os principais trechos desse bate-papo.


CBA – A senhora costuma dizer que as cidades se originaram em uma longa trajetória de séculos de desigualdade e preconceito. Com a industrialização do país, ocorreu a explosão urbana. Quais as consequências disso?


Ermínia Maricato – O Brasil se industrializa fortemente de 1940 a 1980. Nos anos 1960 a indústria automobilística ganha força, assim como a indústria de bens duráveis, como eletroeletrônicos, geladeira e demais eletrodomésticos. Em função disso, temos um operariado muito forte, ligado ao processo de urbanização especialmente em São Paulo e no Sudeste. A taxa de urbanização nesse período é muito alta, mas ao mesmo tempo essa população que chega à cidade não encontra nenhuma alternativa de moradia, nem

pelo mercado, nem pelas políticas públicas. O mercado imobiliário no Brasil nunca ofereceu opções sequer para uma classe média baixa, liderada por trabalhadores regularmente empregados. A maior parte da população que vem para a cidade e não encontra alternativa, constrói sua própria moradia. Para isso, é necessário terra urbana, que precisa, obrigatoriamente, estar ligada à água e ao transporte coletivo. Nesses

lugares, a casa vai sendo feita aos poucos: começa sempre com um cômodo e, aos poucos, vai aumentando. Isso ocorre sempre a partir de um parcelamento ilegal do solo. A maior parte das nossas cidades foi construída dessa forma, ou seja, o que deveria ser regra, é exceção; e o que deveria ser exceção, é regra. A consequência é que a maior parte das moradias urbanas, no Brasil, não segue a legislação.


CBA – Nos anos 1980, a senhora costumava levar alunos para as periferias de São Paulo e de outras cidades. Qual era o objetivo dessas ações?


Ermínia Maricato – Percebi, militando nas comunidades de base da Igreja Católica, nas periferias, que a universidade desconhecia a realidade. As próprias secretarias de planejamento das prefeituras e até mesmo os mapas ignoravam a realidade. Você olhava os mapas e eles estavam verdinhos, como se fossem áreas de proteção de mananciais preservadas. Nos fins de semana, quando ia a esses lugares, via que a ocupação era

efervescente. Essas eram as áreas que sobravam para a população pobre que vinha para as cidades. Eram áreas que não interessavam ao mercado, por possuírem restrições ambientais à ocupação. Eram justamente esses espaços que sobravam para as pessoas que não tinham alternativa. Uma tragédia essa contradição. Percebendo que a universidade e as secretarias de planejamento urbano não tinham conhecimento disso, integramos várias disciplinas do curso de Arquitetura e levávamos os alunos para esses bairros. Eram locais sem infraestrutura, mas cheios de vida.


CBA – A realidade muito distante das leis e dos gabinetes.


Ermínia Maricato – Exatamente. Temos uma legislação muito avançada, um exemplo é o Estatuto das Cidades, que não é aplicada. Temos discursos muito progressistas e avançados, em uma realidade invisível. A representação ideológica das cidades deixa de fora a grande parcela da moradia da classe trabalhadora, que é construída pelas próprias mãos, sem observar a tal legislação, sem a participação de arquitetos, engenheiros ou geólogos. É pra neoliberal nenhum botar defeito, por que, na verdade, não tem lei nenhuma. As pessoas vão construindo, aos poucos, conforme conseguem. Quando o filho casa, constrói sobre a laje. E assim temos bairros e favelas em que as casas estão no quarto pavimento, sem qualquer acompanhamento técnico, sem leis. É a periferia do capitalismo.


CBA – Nesse cenário, qual a função social do arquiteto?


Ermínia Maricato – Somos uma categoria progressista que persegue, desde sempre, essa utopia da função social do arquiteto. Quando vamos para a periferia estamos pensando nessa função social. Queremos trabalhar para a maior parcela da população, queremos mudar o destino da cidade. Mas é a sociedade que nos impõe restrições. E, às vezes, uma parte de nós se acomoda com o mercado. Em vários momentos, conseguimos romper com as amarras da função do arquiteto. No final da ditadura, por exemplo, participamos das propostas de reforma urbana. Ajudamos a construir um arcabouço legal fantástico, como o Estatuto das Cidades. No entanto, quando vemos quantas cidades aplicaram os instrumentos previstos nessas legislações, vemos que nossa aposta no arcabouço legal avançado não funcionou. Mas estamos retomando a ideia da função social do arquiteto, a ideia de que o povo tem o direito à arquitetura. Arquitetura é saúde. Quando olhamos as periferias em que as casas chegam ao quarto andar, umas coladas nas outras, com cômodos sem insolação, sem ventilação, isso tem tudo a ver com doenças respiratórias e epidemias, por exemplo. Precisamos atuar socialmente.


CBA – A senhora vem militando pelo BR CIDADES, um fórum multidisciplinar que pretende debater e propor soluções coletivas e sustentáveis às cidades. Como pensa essa nova agenda urbana e de que forma os arquitetos participam dela?


Ermínia Maricato – Inicialmente, imaginamos um esquema para repensar as cidades que envolvesse estudiosos, professores, cientistas, técnicos, profissionais e lideranças sociais. Uma construção que não é de massa, mas que leva em conta o conhecimento de cada um. Depois a coisa cresceu tanto que estamos incluindo até instituições. No primeiro momento, era somente com a sociedade civil: eu, por exemplo, estou

aposentada, posso dedicar meu tempo a combater o analfabetismo urbanístico, posso levar educação para empoderar a sociedade civil. Esse processo de repensar as cidades passa pela arquitetura, pela engenharia, pelas ciências sociais, pelo direito. Mas principalmente pela arquitetura, que eu vejo em todo o processo de discussão das cidades. Precisamos de advogados para regularização fundiária; precisamos dos engenheiros para urbanizar áreas precárias. Não queremos uma agenda só de arquitetos, isso seria um absurdo, mas me parece que eles têm que ser os primeiros aliados. Somos uma categoria progressista.


CBA – Na sua avaliação, a sociedade tem mecanismos para participar da construção das políticas urbanas atualmente? Somos uma sociedade participativa?


Ermínia Maricato – Tivemos um período de muita participação, em que os movimentos de moradia eram ouvidos. Havia representação política democrática nas periferias. Os trabalhadores, as mulheres, estavam todos organizados em comunidades de base, estávamos nas escolas, nas igrejas, e isso construiu o ciclo democrático. Mas a partir de 1980 houve a desindustrialização, o perfil do trabalhador mudou, as periferias mudaram. Com o passar do tempo, as forças progressistas e de esquerda foram saindo das periferias e migrando para os cargos e para os espaços institucionais. De repente, até as lideranças dos movimentos se contentaram em ir para os conselhos institucionais. Ficamos esvaziados dessa energia que vinha dos bairros, das ruas. Mas o vazio não fica vazio. Esses espaços foram ocupados pelas religiões conservadoras e pelo crime organizado. A ausência do Estado e de uma atividade político-partidária nas periferias abriu espaço para essas forças que nos conduziram à situação em que nos encontramos hoje. Isso veio com uma descrença na política. Os políticos, que passaram a ser considerados os responsáveis pela situação de desamparo das periferias. Hoje, 85% da população brasileira vive nessa cidade em que tudo é difícil e penoso. Entretanto, a

esquerda se afastou das periferias. Nos últimos anos, vemos o investimento público regressivo, que é feito onde não há necessidade social. Assim, temos um povo abandonado. Por isso, é hora de discutir as cidades, de discutir as necessidades do povo no dia a dia. É hora de discutir política urbana. Estou convicta de que não vamos retomar a democracia brasileira sem passar pelas cidades.


CBA – Como a senhora vê a trajetória das políticas urbanas brasileiras e as consequências delas?


Ermínia Maricato – Na criação e no trabalho do Ministério das Cidades, acompanhei muito de perto o que aconteceu na política urbana brasileira. Durante o ciclo do poder local, quando a esquerda era forte, tivemos um desenvolvimento democrático, voltado para as necessidades sociais, a cidade invisível era nossa prioridade. Essa democracia direta aconteceu em um período de austeridade, de poucos recursos disponíveis. Quando chega o PAC e o Minha Casa Minha Vida, ou seja, quando recursos realmente grandes aparecem, com quase RS 800 bilhões em seis anos, os capitais imobiliários tomaram as cidades e definiram, no geral, o tipo e a localização dos investimentos. Vimos muito metrô e BRT sendo construídos em locais que não atendiam a população que mais precisava. O investimento se deu em áreas prioritárias para os proprietários fundiários e imobiliários. O investimento público alavancou o preço da terra e promoveu a especulação imobiliária, ocasionando o aumento do preço dos alugueis e dos imóveis. Estamos vivendo ainda uma crise urbana, em que o gasto com transporte supera o gasto com moradia. O automóvel se manteve como o centro da mobilidade urbana no Brasil, o que é uma tragédia – não só uma tragédia ambiental ou humana, com a morte de mais de 40 mil pessoas por ano em acidentes de trânsito, mas por que o tempo de viagem impacta a saúde mental das pessoas, a poluição afeta a saúde a ponto de reduzir a expectativa de vida. Entre 2003 e 2013, mais que duplicou a presença de automóveis nas cidades. Isso é uma tragédia urbana que sacrifica as cidades. Então, em resumo, não temos sido eficientes em políticas urbanas na história recente.


CBA – Temos leis que poderiam ordenar o crescimento mais sustentável das cidades, mas essas leis parecem não funcionar na prática.


Ermínia Maricato – Na lei é tudo muito bonitinho: você tem APPs na beira dos córregos, mas vai lá ver se a beira dos córregos está liberada, com a vegetação preservada. Não está. Essas áreas são as que sobram para a população pobre, por que não interessam ao mercado, que não pode ocupar a beira de um córrego, um mangue. Não é que o mercado não faça coisas ilegais, por que loteamento fechado, por exemplo, é ilegal e mesmo assim isso se dissemina pelo Brasil. Existe sim ilegalidade na apropriação das elites sobre a terra. Existe uma tradição de grilagem no Brasil. Até hoje não temos cadastro, por exemplo, do que é terra devoluta e do que é terra da União. Então, para a população pobre não há escolha. As pessoas vão para cima de mangue, de duna, de área de mananciais. Em São Paulo, dois milhões de pessoas moram sobre área de proteção de mananciais. E isso não comove o sistema de justiça. A pobreza é empurrada para a ilegalidade, para a destruição ambiental. E as leis se tornam apenas decorativas.


CBA – Como a senhora avalia o programa Minha Casa Minha Vida?


Ermínia Maricato – Essa política do MCMV não ajudou as cidades brasileiras. Grande parte das nossas cidades foi muito prejudicada. Construímos mais de quatro milhões de moradias para baixa renda com subsídio que nunca houve na história do Brasil. As pessoas que foram morar nessas casas, mesmo em conjuntos distantes da área central da cidade, com pouca urbanização, estavam felizes e seguras por que tinham casa própria, pela qual podiam pagar. Desse ponto de vista, o programa foi importante e os movimentos ficaram satisfeitos, sem perceber que 98% do orçamento era encaminhado de forma que iria comprometer as cidades. Comprometer como? Explico. A Caixa Econômica estabeleceu regras, entre elas a de que os conjuntos habitacionais não poderiam ser construídos fora dos perímetros urbanos das cidades. As Câmaras Municipais então ampliaram os perímetros urbanos, colocando quilômetros quadrados de terra vazia para dentro da área considerada urbana. Quando um conjunto habitacional é construído no fim da linha, é preciso fornecer água, esgoto, energia, transporte, coleta de lixo, enfim. Tudo isso é investimento público, a cidade torna-se mais cara e todos pagamos a conta. Isso sem falar no isolamento, que favoreceu a chegada do crime organizado, que hoje controla muitos desses conjuntos habitacionais. As cidades se tornaram mais dispersas, como chamamos no urbanismo, e por consequência mais caras. O preço do metro quadrado aumentou, os aluguéis aumentaram. No começo do programa, partimos de um déficit habitacional de sete milhões de moradias. Entregamos cerca de quatro milhões de unidades. Ao final, temos um déficit habitacional maior do que os sete milhões iniciais. A especulação tomou conta das nossas cidades e subverteu o que poderia ser o crescimento racional e sustentável. E isso é responsabilidade de nós todos, pois a competência para o uso do solo é municipal. Foi um novo padrão de dispersão e de verticalização das cidades que eu espero que nunca mais aconteça. Espero sim é que a gente enfrente esses interesses poderosíssimos sobre a terra urbana e rural e distribua terra, pois sem acesso democrático à terra urbanizada, não vamos resolver nenhum problema.


CBA – Em suas palestras, a senhora costuma citar as Ideias Fora do Lugar, famoso artigo do crítico literário Roberto Schwartz sobre a obra de Machado de Assis. Pode falar mais sobre isso?


Ermínia Maricato – O Roberto é uma inspiração, um mestre, e também um amigo. E acho que o seu argumento tem muito a ver com o nosso debate. Sempre desconfio de Plano Diretor, pois quando se percebe uma exclusão estrutural, só uma lei não costuma resolver. Plano Diretor tem um prestígio enorme na sociedade, as pessoas acham que a cidade está desorganizada por que não tem planejamento. As cidades brasileiras têm plano, mas isso não resolve o nosso problema. Os estudantes de arquitetura já fizeram até um meme comigo, dizendo “Temos planos, temos leis” (risos). No meu exame de titulação na Universidade de São Paulo, estava discutindo isso com o (sociólogo) Chico de Oliveira na banca. Falei que os planos diretores brasileiros eram ideias fora do lugar. Da mesma forma que, no século 19, a elite brasileira era escravista na vida material e liberal nas ideias. O Plano Diretor é sobre uma cidade que não existe. Aí o Chico soltou

essa: “então além de mostrar que existem ideias fora do lugar, você mostra que existe lugar fora das ideias”, ou seja, um lugar para o qual não há ideias, não tem planejamento.



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